segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Rio: só faltou Jack Bauer

Não é que não seja importante prender aqueles traficantes lá no Rio. Eles exercem uma tirania inimaginável sobre as populações locais.  A visão romântica de que são líderes comunitários, que substituem o Estado ausente, é um deboche criado por quem nunca botou os pés nesses lugares.
Não é que não seja interessante ver a população brasileira apoiando um time que não seja de futebol. Ainda que aplaudir forças do Estado em “guerra” possa dar um clima de oba-oba e converter os limites e direitos em simples adereços.
Não é que não se deva combater criminosos apenas porque são pobres, isso seria um sociologismo grosseiro. Pobreza não produz criminosos da mesma forma que riqueza não produz honestidade. Os traficantes do morro não entraram no crime devido à pobreza (mas entrarão no camburão apenas  por causa dela).
Não é o que se fez. Até porque, sem a pirotecnia e os fuzileiros navais, isso é o cotidiano do modelo brasileiro de segurança pública.  Não é também que as forças armadas não poderiam estar juntas. Elas sempre estiveram em espírito. A  polícia carioca é  mais doutrinada em modelos de guerra (destruição do inimigo do Estado, recuperação de territórios para o Estado) do que o próprio Exército!
O problema é o que não se fará.
Combater o inimigo lá fora é o detalhe da questão.  Combater as forças internas (do Estado, da polícia e da política) que alimentam (e não só por omissão) as franquias criminosas, é que é tarefa de gente grande.
Não se rediscutirá também nossa ridícula política em relação às drogas.
Nem nossa mania de prender tudo que se move e oferecer-lhes como dádivas aos chefes do crime, que só se organizaram nas prisões (e só nas prisões) por que o Estado foi desorganizado no seu encarceramento.
Infelizmente, aqui é o país em que para entender de segurança pública basta ter trocado tiros com criminosos e ter feito um curso de técnicas operacionais na Swat.
Enquanto o Brasil tentar resolver sua segurança com o modelo Jack Bauer, produzirá muitos filmes. Prenderá muitos favelados.  Encherá vans com maconha, armas e pés-descalços. Mas, como sabemos, maconha, favelados e armas há de sobra para reposição.  Assim também como ilusões. Que, graças ao Rio, renovaram-se nesse Natal.

Sandro Sell

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A crise no Rio e o pastiche midiático (Luiz Eduardo Soares)

Sempre mantive com jornalistas uma relação de respeito e cooperação. Em alguns casos, o contato profissional evoluiu para amizade. Quando as divergências são muitas e profundas, procuro compreender e buscar bases de um consenso mínimo, para que o diálogo não se inviabilize. Faço-o por ética –supondo que ninguém seja dono da verdade, muito menos eu--, na esperança de que o mesmo procedimento seja adotado pelo interlocutor. Além disso, me esforço por atender aos que me procuram, porque sei que atuam sob pressão, exaustivamente, premidos pelo tempo e por pautas urgentes. A pressa se intensifica nas crises, por motivos óbvios. Costumo dizer que só nós, da segurança pública (em meu caso, quando ocupava posições na área da gestão pública da segurança), os médicos e o pessoal da Defesa Civil, trabalhamos tanto –ou sob tanta pressão-- quanto os jornalistas.
 
Digo isso para explicar por que, na crise atual, tenho recusado convites para falar e colaborar com a mídia:
 
(1) Recebi muitos telefonemas, recados e mensagens. As chamadas são contínuas, a tal ponto que não me restou alternativa a desligar o celular. Ao todo, nesses dias, foram mais de cem pedidos de entrevistas ou declarações. Nem que eu contasse com uma equipe de secretários, teria como responder a todos e muito menos como atendê-los. Por isso, aproveito a oportunidade para desculpar-me. Creiam, não se trata de descortesia ou desapreço pelos repórteres, produtores ou entrevistadores que me procuraram.
(2) Além disso, não tenho informações de bastidor que mereçam divulgação. Por outro lado, não faria sentido jogar pelo ralo a credibilidade que construí ao longo da vida. E isso poderia acontecer se eu aceitasse aparecer na TV, no rádio ou nos jornais, glosando os discursos oficiais que estão sendo difundidos, declamando platitudes, reproduzindo o senso comum pleno de preconceitos, ou divagando em torno de especulações. A situação é muito grave e não admite leviandades. Portanto, só faria sentido falar se fosse para contribuir de modo eficaz para o entendimento mais amplo e profundo da realidade que vivemos. Como fazê-lo em alguns parcos minutos, entrecortados por intervenções de locutores e debatedores? Como fazê-lo no contexto em que todo pensamento analítico é editado, truncado, espremido –em uma palavra, banido--, para que reinem, incontrastáveis, a exaltação passional das emergências, as imagens espetaculares, os dramas individuais e a retórica paradoxalmente triunfalista do discurso oficial?
(3) Por fim, não posso mais compactuar com o ciclo sempre repetido na mídia: atenção à segurança nas crises agudas e nenhum investimento reflexivo e informativo realmente denso e consistente, na entressafra, isto é, nos intervalos entre as crises. Na crise, as perguntas recorrentes são: (a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a explosão de violência? (b) O que a polícia deveria fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas? (c) Por que o governo não chama o Exército? (d) A imagem internacional do Rio foi maculada? (e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Ao longo dos últimos 25 anos, pelo menos, me tornei “as aspas” que ajudaram a legitimar inúmeras reportagens. No tópico, “especialistas”, lá estava eu, tentando, com alguns colegas, furar o bloqueio à afirmação de uma perspectiva um pouquinho menos trivial e imediatista. Muitas dessas reportagens, por sua excelente qualidade, prescindiriam de minhas aspas –nesses casos, reduzi-me a recurso ocioso, mera formalidade das regras jornalísticas. Outras, nem com todas as aspas do mundo se sustentariam. Pois bem, acho que já fui ou proporcionei aspas o suficiente. Esse código jornalístico, com as exceções de praxe, não funciona, quando o tema tratado é complexo, pouco conhecido e, por sua natureza, rebelde ao modelo de explicação corrente. Modelo que não nasceu na mídia, mas que orienta as visões aí predominantes. Particularmente, não gostaria de continuar a ser cúmplice involuntário de sua contínua reprodução.
Eis por que as perguntas mencionadas são expressivas do pobre modelo explicativo corrente e por que devem ser consideradas obstáculos ao conhecimento e réplicas de hábitos mentais refratários às mudanças inadiáveis. Respondo sem a elegância que a presença de um entrevistador exigiria. Serei, por assim dizer, curto e grosso, aproveitando-me do expediente discursivo aqui adotado, em que sou eu mesmo o formulador das questões a desconstruir. Eis as respostas, na sequência das perguntas, que repito para facilitar a leitura:
(a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a violência e resolver o desafio da insegurança?
Nada que se possa fazer já, imediatamente, resolverá a insegurança. Quando se está na crise, usam-se os instrumentos disponíveis e os procedimentos conhecidos para conter os sintomas e salvar o paciente. Se desejamos, de fato, resolver algum problema grave, não é possível continuar a tratar o paciente apenas quando ele já está na UTI, tomado por uma enfermidade letal, apresentando um quadro agudo. Nessa hora, parte-se para medidas extremas, de desespero, mobilizando-se o canivete e o açougueiro, sem anestesia e assepsia. Nessa hora, o cardiologista abre o tórax do moribundo na maca, no corredor. Não há como construir um novo hospital, decente, eficiente, nem para formar especialistas, nem para prevenir epidemias, nem para adotar procedimentos que evitem o agravamento da patologia.  Por isso, o primeiro passo para evitar que a situação se repita é trocar a pergunta. O foco capaz de ajudar a mudar a realidade é aquele apontado por outra pergunta: o que fazer para aperfeiçoar a segurança pública, no Rio e no Brasil, evitando a violência de todos os dias, assim como sua intensificação, expressa nas sucessivas crises?
Se o entrevistador imaginário interpelar o respondente, afirmando que a sociedade exige uma resposta imediata, precisa de uma ação emergencial e não aceita nenhuma abordagem que não produza efeitos práticos imediatos, a melhor resposta seria: caro amigo, sua atitude representa, exatamente, a postura que tem impedido avanços consistentes na segurança pública. Se a sociedade, a mídia e os governos continuarem se recusando a pensar e abordar o problema em profundidade e extensão, como um fenômeno multidimensional a requerer enfrentamento sistêmico, ou seja, se prosseguirmos nos recusando, enquanto Nação, a tratar do problema na perspectiva do médio e do longo prazos, nos condenaremos às crises, cada vez mais dramáticas, para as quais não há soluções mágicas.
A melhor resposta à emergência é começar a se movimentar na direção da reconstrução das condições geradoras da situação emergencial. Quanto ao imediato, não há espaço para nada senão o disponível, acessível, conhecido, que se aplica com maior ou menor destreza, reduzindo-se danos e prolongando-se a vida em risco.
A pergunta é obtusa e obscurantista, cúmplice da ignorância e da apatia.
(b) O que as polícias fluminenses deveriam fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas?
Em primeiro lugar, deveriam parar de traficar e de associar-se aos traficantes, nos “arregos” celebrados por suas bandas podres, à luz do dia, diante de todos. Deveriam parar de negociar armas com traficantes, o que as bandas podres fazem, sistematicamente. Deveriam também parar de reproduzir o pior do tráfico, dominando, sob a forma de máfias ou milícias, territórios e populações pela força das armas, visando rendimentos criminosos obtidos por meios cruéis.
Ou seja, a polaridade referida na pergunta (polícias versus tráfico) esconde o verdadeiro problema: não existe a polaridade. Construí-la –isto é, separar bandido e polícia; distinguir crime e polícia-- teria de ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome. Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. E só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias.
Não digo isso para ofender os policiais ou as instituições. Não generalizo. Pelo contrário, sei que há dezenas de milhares de policiais honrados e honestos, que arriscam, estóica e heroicamente, suas vidas por salários indignos. Considero-os as primeiras vítimas da degradação institucional em curso, porque os envergonha, os humilha, os ameaça e acua o convívio inevitável com milhares de colegas corrompidos, envolvidos na criminalidade, sócios ou mesmo empreendedores do crime.
Não nos iludamos: o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico. Incapaz, inclusive, de competir com as milícias, cuja competência está na disposição de não se prender, exclusivamente, a um único nicho de mercado, comercializando apenas drogas –mas as incluindo em sua carteira de negócios, quando conveniente. O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, anti-econômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção. É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas. Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra. Convenhamos, também é muito menos danoso para a sociedade, por óbvio.
(c) O Exército deveria participar?
Fazendo o trabalho policial, não, pois não existe para isso, não é treinado para isso, nem está equipado para isso. Mas deve, sim, participar. A começar cumprindo sua função de controlar os fluxos das armas no país. Isso resolveria o maior dos problemas: as armas ilegais passando, tranquilamente, de mão em mão, com as benções, a mediação e o estímulo da banda podre das polícias.
E não só o Exército. Também a Marinha, formando uma Guarda Costeira com foco no controle de armas transportadas como cargas clandestinas ou despejadas na baía e nos portos. Assim como a Aeronáutica, identificando e destruindo pistas de pouso clandestinas, controlando o espaço aéreo e apoiando a PF na fiscalização das cargas nos aeroportos.
(d) A imagem internacional do Rio foi maculada?
Claro. Mais uma vez.
(e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Sem dúvida. Somos ótimos em eventos. Nesses momentos, aparece dinheiro, surge o “espírito cooperativo”, ações racionais e planejadas impõem-se. Nosso calcanhar de Aquiles é a rotina. Copa e Olimpíadas serão um sucesso. O problema é o dia a dia.
Palavras Finais
Traficantes se rebelam e a cidade vai à lona. Encena-se um drama sangrento, mas ultrapassado. O canto de cisne do tráfico era esperado. Haverá outros momentos análogos, no futuro, mas a tendência declinante é inarredável. E não porque existem as UPPs, mas porque correspondem a um modelo insustentável, economicamente, assim como social e politicamente. As UPPs, vale dizer mais uma vez, são um ótimo programa, que reedita com mais apoio político e fôlego administrativo o programa “Mutirões pela Paz”, que implantei com uma equipe em 1999, e que acabou soterrado pela política com “p” minúsculo, quando fui exonerado, em 2000, ainda que tenha sido ressuscitado, graças à liderança e à competência raras do ten.cel. Carballo Blanco, com o título GPAE, como reação à derrocada que se seguiu à minha saída do governo. A despeito de suas virtudes, valorizadas pela presença de Ricardo Henriques na secretaria estadual de assistência social --um dos melhores gestores do país--, elas não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas. Afinal, para tornarem-se política pública terão de incluir duas qualidades indispensáveis: escala e sustentatibilidade, ou seja, terão de ser assumidas, na esfera da segurança, pela PM. Contudo, entregar as UPPs à condução da PM seria condená-las à liquidação, dada a degradação institucional já referida.
O tráfico que ora perde poder e capacidade de reprodução só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se estabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da polícia, vale reiterar. Quando o tráfico de drogas no modelo territorializado atinge seu ponto histórico de inflexão e começa, gradualmente, a bater em retirada, seus sócios –as bandas podres das polícias-- prosseguem fortes, firmes, empreendedores, politicamente ambiciosos, economicamente vorazes, prontos a fixar as bandeiras milicianas de sua hegemonia.
Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção? Como se refundarão as instituições policiais para que os bons profissionais sejam, afinal, valorizados e qualificados? Como serão transformadas as polícias, para que deixem de ser reativas, ingovernáveis, ineficientes na prevenção e na investigação?
As polícias são instituições absolutamente fundamentais para o Estado democrático de direito. Cumpre-lhes garantir, na prática, os direitos e as liberdades estipulados na Constituição. Sobretudo, cumpre-lhes proteger a vida e a estabilidade das expectativas positivas relativamente à sociabilidade cooperativa e à vigência da legalidade e da justiça. A despeito de sua importância, essas instituições não foram alcançadas em profundidade pelo processo de transição democrática, nem se modernizaram, adaptando-se às exigências da complexa sociedade brasileira contemporânea. O modelo policial foi herdado da ditadura. Ele servia à defesa do Estado autoritário e era funcional ao contexto marcado pelo arbítrio. Não serve à defesa da cidadania. A estrutura organizacional de ambas as polícias impede a gestão racional e a integração, tornando o controle impraticável e a avaliação, seguida por um monitoramento corretivo, inviável. Ineptas para identificar erros, as polícias condenam-se a repeti-los. Elas são rígidas onde teriam de ser plásticas, flexíveis e descentralizadas; e são frouxas e anárquicas, onde deveriam ser rigorosas. Cada uma delas, a PM e a Polícia Civil, são duas instituições: oficiais e não-oficiais; delegados e não-delegados.
E nesse quadro, a PEC-300 é varrida do mapa no Congresso pelos governadores, que pagam aos policiais salários insuficientes, empurrando-os ao segundo emprego na segurança privada informal e ilegal.
Uma das fontes da degradação institucional das polícias é o que denomino "gato orçamentário", esse casamento perverso entre o Estado e a ilegalidade: para evitar o colapso do orçamento público na área de segurança, as autoridades toleram o bico dos policiais em segurança privada. Ao fazê-lo, deixam de fiscalizar dinâmicas benignas (em termos, pois sempre há graves problemas daí decorrentes), nas quais policiais honestos apenas buscam sobreviver dignamente, apesar da ilegalidade de seu segundo emprego, mas também dinâmicas malignas: aquelas em que policiais corruptos provocam a insegurança para vender segurança; unem-se como pistoleiros a soldo em grupos de extermínio; e, no limite, organizam-se como máfias ou milícias, dominando pelo terror populações e territórios. Ou se resolve esse gargalo (pagando o suficiente e fiscalizando a segurança privada /banindo a informal e ilegal; ou legalizando e disciplinando, e fiscalizando o bico), ou não faz sentido buscar aprimorar as polícias.
O Jornal Nacional, nesta quinta, 25 de novembro, definiu o caos no Rio de Janeiro, salpicado de cenas de guerra e morte, pânico e desespero, como um dia histórico de vitória: o dia em que as polícias ocuparam a Vila Cruzeiro. Ou eu sofri um súbito apagão mental e me tornei um idiota contumaz e incorrigível ou os editores do JN sentiram-se autorizados a tratar milhões de telespectadores como contumazes e incorrigíveis idiotas. Ou se começa a falar sério e levar a sério a tragédia da insegurança pública no Brasil, ou será pelo menos mais digno furtar-se a fazer coro à farsa
 
Postagem Prof. Ruben Rockenabach

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Dá-me um porão, uma mãe dominadora e uma boneca e eu te darei um serial killer

     Na criminalística do Discovery Channel e nos filmes policiais, é freqüente o FBI contribuir com seu “especialista em perfil”, para levantar, a partir do modus operandi do criminoso, o grupo psicológico (sic) a que esse pertence. Algo como: “Isso revela que o criminoso é homem, branco, obsessivo, provavelmente na faixa dos 40 anos, que vive sozinho, tem aversão a mulheres, e que deve ter sido criado apenas pela mãe, ou por uma tia.” O solitário quarentão caucasiano, com tendência homossexuais reprimidas, com personalidade oscilando entre a perversidade e a busca neurótica de ordem (colecionador de miniaturas), é um clássico nos perfis traçados pelo CSI, nas entrevistas com médicos forenses, e na fala autorizada de policiais aposentados.          Como eles chegam a esse perfil? Não sei. Mas tenho minhas hipóteses:

   a) O FBI – e seus clones - possui uma psicologia que não se ensina em Harvard, Sorbonne ou em qualquer outra universidade do mundo. É uma psicologia gnóstica que, assim como o Santo Graal, é mantida no mais rígido segredo por uma irmandade que mata ou morre para que os profanos não a conheçam. Nesse caso, a menos que Dan Brown arregasse as mangas e a desvende, continuaremos sendo alienados pela inconclusiva psicologia acadêmica
b) Tal psicologia é na verdade uma psicanalisada rasteira, de senso comum. O especialista em perfis olha para a vítima mulher, vilipendeada e morta, sem que nada lhe fosse roubado, e calcula que uma maldade desse tipo só pode ser obra de um homem que não ama as mulheres. Logo é solitário. E por que não ama as mulheres? Porque foi educado, muito provavelmente, por uma mãe repressora, que o trancava no porão, onde ele passava as tardes torturando gatos e decepando a cabeça da boneca da irmã. Aí se junta tudo:animais, bonecas, porão, fungo, repressão, dominação feminina, uma pitada de homossexualidade, a crise dos 40, o divórcio, a compulsão por comida, vizinhas gostozinhas se exibindo para garotões sarados. E uma mente martelando “por que não eu”, “essas vadias não reconhecem meu valor”, “prostitutas!”, “vou mostrar do que sou capaz”, “tenho que limpar o mundo”, uma faca, um rolo de silver tape...  E qualquer pacato vizinho vira um psicopata.
c) A pefilista sabe, pela conjuração dos astros, que quem matou aquele crime é provavelmente de Áries com ascendente em gêmeos e daí tira essa conclusão, ou qualquer outra permitida por essa ciência milenar, a Astrologia, a que Marcuse, por não conhecê-la a fundo,  dizia ser a "metafísica dos parvos".

Você deve ter notado que nesses perfis o criminoso não costuma ser negro nem árabe. Minhas hipóteses para isso:
a) Negros e árabes nos EUA são tomados como suspeitos “intuitivos”: quando um crime é dado como sem resolução significa que todo negro e todo árabe, num raio de 50 km do ocorrido, já foi detido, surrado e liberado por falta de provas. Ou seja, o perfilista só chega quando os suspeitos habituais já foram descartados;
b) Apresentar o suspeito como sendo branco, ainda que depois se comprove ser um negro, permite ocultar o erro de cálculo, alegando que a polícia sempre soube ser um negro, e falou que era branco só para “não atrapalhar as investigações”; mas se fosse o contrário, ou seja, se a polícia soubesse que era um branco e, para ocultar, fez de conta que era um negro, iria sofrer acusações de preconceito e racismo.

Disso tudo concluo que o suspeito do perfil  do especialista é o resultado de uma bricolagem entre o não-sei-quem-foi e o quero-que-você-pense-que-eu-sei, com pitadas de politicamente correto e 3 palavras de algum livro da década de 1950, com o título de “Aberrações sexuais na infância e a degeneração da nossa mocidade.” Agora vou terminar de assistir o filme e vê se eu já posso ser perfilista de Hoolyood.
Sandro Sell.

Foto: A garota com cara de má que, no fundo, é um doce sendo torturada pelo bom pai de família que, no fundo, é um psicopata. Do filme:  Os homens que não amavam as mulheres. 


sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Santa Catarina: tratamento aos adolescentes como nos tempos da escravidão

Tortura, humilhação, maus-tratos. Uso de armas de fogo para intimidar e algemas de pulso e de tornozelos para castigar. Os itens fazem parte do relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) depois da visita em 14 centros de internação para adolescentes infratores em 20 municípios de Santa Catarina. Com base no que foi apurado, em agosto, por um grupo formado por técnicos e representante do CNJ, foi recomendado ao governo do Estado que feche o Plantão Interinstitucional de Atendimento (Pliat), em Florianópolis; e o Centro Educacional São Lucas, em São José.
— Esperávamos bem mais de Santa Catarina, um estado desenvolvido e mais rico do que outros da federação, em termos de de medidas socioeducativas para os seus adolescentes infratores — disse ao DC, o juiz auxiliar da presidência do CNJ, Reinaldo Cintra Torres de Carvalho.
As queixas dos adolescentes foram ouvidas pela equipe do Programa Medida Justa, do CNJ, que realiza inspeções em unidades de internação de todo o país para traçar um diagnóstico da situação dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas.
O documento descreve que os monitores, ao invés de internalizar os valores protetivos e socioeducativos no tratamento dos adolescentes, "vivenciam cultura de dominação e intimidação".
— Estas duas unidades, especialmente, apresentam uma realidade pior do que nos tempos das escravidão — observou o juiz.
Na unidade Pliat, definida como "semelhante a uma masmorra da Idade Média", a equipe do CNJ viu, em cada um dos alojamentos, três ganchos presos à parede. Os adolescentes contaram que, ali são algemados nus e, em seguida, agredidos e torturados. Além disso, os internos contaram ser obrigados a urinar dentro de seus próprios alojamentos, em garrafas tipo pet. Isso ocorre quando eles não conseguem ir ao banheiro, porque os monitores se negam a abrir a grade do alojamento.
O clima de intimidação na Pliat se reflete também nas caveiras que adornam o quadro de avisos e nas camisetas pretas dos monitores que, segundo relato dos menores, portam, durante a noite, pistolas.
Na unidade São Lucas, segundo o relatório, a arquitetura é inadequada e "a gestão padece de problemas semelhantes aos verificados no Pliat, com notícias de tortura, agressões, tratamento degradante e intimidação", além do fato de os funcionários não recolherem o lixo despejado pelos internos, que acaba se acumulando no chão.
"Estado não está omisso"
O secretário-executivo de Justiça e Cidadania de Santa Catarina, Justiniano Pedroso, disse que a recomendação de fechamento das duas unidades não irá ocorrer. A menos que exista uma determinação judicial, ponderou. A respeito das denúncias de tortura e uso de armas pelos monitores considerou que "isso não pode ocorrer, mas não tenho como garantir que não aconteça".
Pedroso confirmou, no entanto, que depois de ser informado por representantes da CNJ sobre ganchos nos quais os adolescente seriam algemados, ainda em agosto, mandou retirá-los imediatamente. Pedroso disse que toda denúncia de tortura com fundamento é investigada. Explicou que existem 10 processos administrativos em andamento, inclusive no Tribunal de Justiça, e com recomendação de afastamento por um agente que utilizou arma dentro do Centro Educacional São Lucas.
O secretário disse que o Estado "não está omisso às políticas de atendimento aos adolescentes infratores" e apresentou números relacionados ao aumento de vagas nos centros (de 280 para 680) nas últimas administrações e de agentes (de 53 para 230). O secretário-executivo salientou a respeito das obras em andamento no São Lucas e da construção de unidades em Joinville e Grande Florianópolis.
— Enfrentamos dificuldades para as obras, como o fato das comunidades também não desejarem a implantação de unidades para adolescentes infratores. Mas estamos atentos — disse.
Sobre o uso de camisetas com caveiras, por funcionários do Pliat e que causariam intimidação nos internos, a resposta de técnicos do setor que participaram da coletiva é que "se tratavam de propaganda de um banda de rock".

DIÁRIO CATARINENSE

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Lançamento: S.O.S Segurança Pública

No filme Nascido para matar, do Stanley Kubrick, o recruta Joker, personagem principal, irrita seu comandante por trazer em seu capacete o símbolo da paz ao lado da expressão Born to kill. Interrogado pelo superior, ele respondeu: "É aquela porra do Jung, Sr! A idéia de bem e mal dentro de nós!". 

O que faz Jung na vida militar? Isso eu pergunto ao Alaor (que é PM), e que mandou o convite abaixo. Fui membro da sua banca de   Psicologia  (orientada pelo Paulo Cesar Nascimento - do blog soco no figo). Naquela ocasião, ele defendeu uma interessante tese acerca de como a sombra (conceito junguiano) do herói pairava sobre a função policial militar. Foi aprovado com distinção. Vamos ver o que ele fez dessa vez. Vamos ver como ele conciliou seu olhar teórico e operacional. Estarei lá.

Convido a todos para o lançamento de meu livro "SOS Segurança Pública: soluções práticas para questões emergentes":
 
Local: Livrarias Catarinense - Shopping Beira Mar - Florianópolis
Data: 12/11/2010
Hora 19:00h
 


Sandro Sell

domingo, 7 de novembro de 2010

"Nordestino não deve votar!"

O fato de Dilma ter sido eleita com grande parte do voto das regiões mais carentes do Brasil pode – e deve – gerar uma série de possíveis hipóteses:
 Primeira: os bolsa-isso-e-aquilo não seriam uma forma subliminar de compra de voto? Para mim, a resposta é não, pois que se trata de uma política estatal de distribuição de renda, que – ao contrário dos outros modelos – canalizou verbas da nação para os mais aflitos. Se o governo tivesse ampliado  o subsidio das passagens aéreas, se o governo tivesse aumentado o limite das compras no free-shop (o bolsa-muamba), se o governo tivesse ampliado ainda mais o subsídio ao diesel, para que as caminhonetes de luxo economizem às nossas custas (o bolsa-mitsubishi), se tivesse aumentado  o índice de dedução da lei de incentivo à cultura (para que os atores do zorra-total possam ter seus espetáculos teatrais ainda mais financiados pelo uso de impostos das “empresas patrocinadoras”), se tivesse insistido, enfim, nos inúmeros bolsa-classe-média-alta, ninguém acharia compra de voto. 
Segunda: os nordestinos não sabem votar? Durante décadas se ouviu dizer que os nordestinos, por seu escasso acesso à educação, votavam em velhos coronéis que, dizendo-se seus “padrinhos”, apenas perpetuavam sua miséria. Então, surge um outro “coronel”, só que dessa vez paga para as crianças deixarem as carvoarias e irem para a escola; que tributa negativamente os miseráveis, gerando renda em forma de bolsa. E as pessoas dessas regiões compreendem a diferença entre os “ coronéis”  e votam para que assim continue. Isso é não saber votar?
3)    Mas o que mais assusta é o “ovo da serpente” da mentalidade fascista: bastaram as análises – muito mal feitas, por sinal – de que as regiões pobres é que elegeram a continuidade de Lula para que o fascismo de classe média voltasse à tona: nordestino não deveria votar! Fascismo em grande parte incentivado pela grande mídia que, descontente por ter perdido parte de suas bolsas-publicidade-do-governo e por não poder decidir nas suas reuniões privadas quem seria o presidente do Brasil (como fizeram com Collor), trataram dizer que o resultado da eleição mostra dois brasis: o do Lula e o desenvolvido.
      Foi a vitória da opinião pública sobre a opinião publicada. Pois, leia a as manchetes das revistas e jornais dos últimos anos e note que, para a grande mídia, os únicos problemas relevantes sempre foram: atrasos nos aeroportos, reajustes nos planos privados de saúde, compra-e-venda de atletas e assassinatos com vítimas especiais (ou seja: não favelados). Não é à toa que leitores desses meios não consigam avaliar o significado de 100 reais na vida de uma família no interior do Piauí. Para tais leitores, política pública é melhorar as vias de acesso aos shopings, duplicar rodovias praieiras e baixar o preço da entrada no cinema.
     Infelizmente, para o projeto da manutenção de dois brasis, os pobres estão aprendendo a votar. O “nordestino “ (denominação genérica do eleitor da Dilma de qualquer região) já não é mais controlado unicamente pela opinião da grande mídia. E chamar tal descontrole de analfabetismo político só indica uma coisa: que os “democratas” da oposição só aceitam a soberania das urnas quando saem vencedores.  


    
      Sandro Sell


    Foto: Mussolini, que também só acreditava nas urnas quando estas lhe favoreciam.
  
S